“Que todos estejam alegres no primeiro dia da semana”, diz um documento cristão antigo. Mas a alegria cristã é incompatível com a realidade da mortificação? As penitências feitas durante o tempo da Quaresma, por exemplo, devem ser interrompidas no Dia do Senhor?
Seria proibido fazer penitência aos domingos? O Código de Direito Canônico indica, a esse respeito, dois preceitos aparentemente contraditórios, daí a importância da pergunta e do esclarecimento. O cân. 1247, por exemplo, diz que,
No domingo e nos outros dias festivos de preceito os fiéis têm obrigação de participar na Missa, abstenham-se ainda daqueles trabalhos e negócios que impeçam o culto a prestar a Deus, a alegria própria do dia do Senhor (laetitiam diei Domini propriam), ou o devido repouso do espírito e do corpo.
Supondo, a partir disso, que certas mortificações poderiam impedir “a alegria própria do dia do Senhor, ou o devido repouso do espírito e do corpo”, teríamos uma resposta positiva à questão apresentada: fazer penitência aos domingos seria algo contrário ao espírito do 3.º mandamento da lei de Deus.
No entanto, poucos cânones a seguir, a Igreja determina também que “os dias e tempos de penitência na Igreja universal são todas as sextas-feiras do ano e o tempo da Quaresma” (cân. 1250). Sendo assim, a pergunta permanece: é lícito ou não penitenciar-se no Dia do Senhor?
Para entender melhor o problema, nada como recorrer à mente do legislador. O mesmo homem que promulgou o Código de Direito Canônico de 1983, ninguém menos que o Papa São João Paulo II, deixou a toda a Igreja, alguns anos depois, uma riquíssima reflexão “sobre a santificação do domingo”.
Da exortação apostólica Dies Domini transcrevemos abaixo os pontos 55-58, cujo tema é “A ‘alegria plena’ de Cristo”:
55. “Bendito seja Aquele que elevou o grande dia do Domingo acima de todos os dias. Os céus e a terra, os anjos e os homens abandonam-se à alegria (99). Estas loas da liturgia maronita testemunham bem as intensas aclamações de alegria que sempre caracterizaram o domingo, nas liturgias ocidental e oriental. Historicamente, ainda antes de ser vivido como dia de repouso aliás não previsto então no calendário civil — os cristãos viveram o dia semanal do Senhor ressuscitado sobretudo como dia de alegria. “Que todos estejam alegres, no primeiro dia da semana”: lê-se na Didascália dos Apóstolos (100). A manifestação da alegria era visível também no uso litúrgico, mediante a escolha de gestos apropriados (101). S. Agostinho, fazendo-se intérprete da consciência geral da Igreja, põe evidência tal caráter da Páscoa semanal: “Omitem-se os jejuns e reza-se de pé como sinal da ressurreição; também por isso se canta todos os domingos o aleluia.” (102) 56. Para além das diversas expressões rituais que podem variar com o tempo segundo a disciplina eclesial, resta o facto de o domingo, eco semanal da primeira experiência do Ressuscitado, não poder deixar de conservar o tom da alegria com que os discípulos acolheram o Mestre: “Alegraram-se os discípulos, vendo o Senhor” (Jo 20, 20). Cumpria-se neles, tal como se há-de actuar em todas as gerações cristãs, aquilo que Jesus disse antes da paixão: “Vós estareis tristes, mas a vossa tristeza converter-se-á em alegria” (Jo 16, 20). Porventura não tinha Ele mesmo rezado para que os discípulos tivessem “a plenitude da sua alegria” (cf. Jo 17, 13)? O carácter festivo da Eucaristia dominical exprime a alegria que Cristo transmite à sua Igreja através do dom do Espírito; a alegria é precisamente um dos frutos do Espírito Santo (cf. Rm 14, 17; Gl 5, 22). 57. Assim, para apreender completamente o sentido do domingo, é preciso descobrir esta dimensão da nossa existência de crentes. É certo que a alegria cristã deve caracterizar toda a vida, e não só um dia da semana. Mas o domingo, em virtude do seu significado de dia do Senhor ressuscitado, no qual se celebra a obra divina da criação e da “nova criação”, é, a título especial, um dia de alegria, mais ainda um dia propício para educar à alegria, descobrindo novamente os seus traços autênticos e as suas raízes profundas. Na realidade, a alegria não deve ser confundida com fúteis sentimentos de saciedade e prazer, que inebriam a sensibilidade e a afectividade por breves momentos, mas depois deixam o coração na insatisfação e talvez mesmo na amargura. Do ponto de vista cristão, ela é algo de muito mais duradouro e consolador, conseguindo mesmo, como o comprovam os santos (103), resistir à noite escura da dor; de certo modo, é uma “virtude” a ser cultivada. 58. Não existe qualquer oposição entre a alegria cristã e as verdadeiras alegrias humanas. Pelo contrário, estas ficam enaltecidas e encontram o seu fundamento último precisamente na alegria de Cristo glorificado (cf. At 2, 24-31), imagem perfeita e revelação do homem segundo o desígnio de Deus. Na sua Exortação Apostólica sobre a alegria cristã, o meu venerado predecessor Paulo VI escreveu que, “por essência, a alegria cristã é participação espiritual na alegria insondável, conjuntamente divina e humana, que está no coração de Jesus Cristo glorificado” (104). E o referido Sumo Pontífice concluía a sua Exortação pedindo que, no dia do Senhor, a Igreja testemunhasse vigorosamente a alegria experimentada pelos Apóstolos, quando viram o Senhor na tarde do dia de Páscoa. Por isso, convidava os Pastores a insistirem “na fidelidade dos baptizados à celebração, com alegria, da Eucaristia dominical. Como poderiam eles, de facto, negligenciar este encontro, este banquete que Cristo nos prepara com o seu amor? Que a participação em tal celebração seja, ao mesmo tempo, digna e festiva! é Cristo, crucificado e glorificado, que passa entre os seus discípulos para conduzi-los todos juntos, consigo, na renovação da sua Ressurreição. É o ápice, aqui neste mundo, da Aliança de amor entre Deus e o seu povo: sinal e fonte de alegria cristã, preparação para a Festa eterna” (105). Nesta perspectiva de fé, o domingo cristão é verdadeiramente um “fazer festa”, um dia dado por Deus ao homem para o seu pleno crescimento humano e espiritual.
Considerando tudo o que foi dito pelo Papa Wojtyla, concluímos que, de facto, o domingo não é um dia penitencial. Como regra geral, portanto, não é aconselhável que acrescentemos, neste dia, mortificações à nossa lista de penitências.
Dizer, porém, que é terminantemente proibido penitenciar-se no Dia do Senhor seria ignorar, primeiro, o carácter flexível das “expressões rituais” com que os cristãos sempre viveram o espírito do domingo; segundo, o nosso estado de fragilidade nesta vida, em que necessitamos constantemente de mortificação; e, por fim, a própria natureza da alegria cristã, que pode conviver tranquilamente com os sofrimentos inerentes a esta vida, como diz o Apóstolo: “A insignificância de uma tribulação momentânea acarreta para nós um volume incomensurável e eterno de glória” (2Cor 4, 17). Para um cristão de verdade, não pode haver alegria maior do que sofrer por seu Deus.
Por isso, seja no tempo litúrgico da Quaresma, unidos a toda a Igreja, seja em um tempo de purificação pessoal, vivido de modo particular e sob a orientação de um director espiritual, não só é possível, como muito agradável a Deus continuarmos a viver nossos propósitos de penitência também durante os domingos. Os pequenos sacrifícios que fazemos não comprometem, afinal, “a alegria própria do dia do Senhor”. Muito pelo contrário, ajudam-nos a lembrar que, diferentemente dos pagãos e dos mundanos, que depositam já aqui neste mundo a sua esperança, nós cristãos só teremos verdadeiro repouso e alegria definitiva na Páscoa eterna do Céu.
Referências
(99) Proclamação diaconal em memória do dia do Senhor: cf. o texto siríaco no Missal próprio do rito da Igreja de Antioquia dos Maronitas (edição em siríaco e árabe) Jounieh (Líbano) 1959, p. 38.
(100) V, 20, 11: ed. F. X. Funk (1905), 298. Cf. também Didaqué 14, 1: ed. F. X. Funk (1901), 32; Tertuliano, Apologeticum 16, 11: CCL 1, 116. Veja-se, em particular, a Epístola de Barnabé 15, 9 SC 172, 188-189: “é por isso que celebramos como uma festa jubilosa o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de ter aparecido aos seus discípulos, subiu ao céu”.
(101) Tertuliano, por exemplo, conta que era proibido ajoelhar-se aos domingos, porque, sendo esta posição considerada, então, sobretudo como gesto penitencial, parecia pouco adequada no dia da alegria: cf. De corona 3, 4: CCL 2, 1043.
(102) Epistula 55, 28: CSEL 342, 202.
(103) Cf. S. Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, Derniers entretiens (5-6 de Julho de 1897): Oeuvres complètes, Cerf-Desclée de Brouwer, Paris 1992, pp. 1024-1025.
(104) Exort. ap. Gaudete in Domino (9 de Maio de 1975), II: AAS 67 (1975), 295.
(105) Ibid., VII (conclusão): o.c., 322.