Escreve São João da Cruz que:
Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra — e não tem outra — (Deus) disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única e já nada mais tem para dizer. [...] Porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho (citado em Catecismo da Igreja Católica, n. 65).
O Pai pronunciou a sua Palavra: eis o que recordamos todos os anos no Natal. Na Queda, o homem se distanciou da voz de Deus, deixando de dar-lhe ouvidos. O Senhor que “passeava” pelo jardim todos os dias com Adão e Eva aparentemente tinha escondido sua face — ainda que, na verdade, tenha sido a humanidade a esconder-se, com medo, da luminosa face de Deus.
Depois de séculos cambaleando, cego, na escuridão da ignorância, do erro e do pecado, o velho Adão — pelo menos sob o aspecto dos profetas de Israel e dos pagãos sábios, os mais auto-conscientes dos homens e, por isso mesmo, os mais conscientes de Deus — sabia ser necessária alguma espécie de resgate dramático para devolver a saúde à humanidade.
O que esses homens não sabiam é que esse resgate “desde fora” seria, ainda mais profundamente, um resgate desde dentro. Quando a Palavra se fez carne no ventre da Virgem Maria, o Filho único do Pai eterno se fez homem, a fim de inserir na natureza humana a graça e a glória da sua divindade. Era para acontecer uma reparação e restauração a partir de nossa natureza, e não fora dela, como seria a repintura de um prédio antigo.
A Palavra se fez carne. O Verbo assumiu uma habitação corpórea. O Deus escondido tem um rosto humano. Seus santíssimos lábios pregam as palavras de vida eterna. Agora o que nos cabe é sentar-nos a seus pés, como Maria de Betânia, e escutá-lO continuamente, bebendo de suas palavras e atando-nos bem forte a seu Coração.
Quando o Beato John Henry Newman escolheu como lema cardinalício a expressão Cor ad cor loquitur, “O coração fala ao coração”, ele estava a captar numa frase a realidade e o instrumento mais essencial da verdadeira religião: trata-se, antes de tudo, de um relacionamento pessoal no qual tudo está em jogo. É um presente total de si Àquele que amou a humanidade. É uma questão de amizade, mais do que de proposições doutrinais, normas morais, costumes litúrgicos etc.
Quem ama aceita tudo o mais: todas as proposições, normas e costumes. E faz isso não com reclamações, mas sim com uma alegria contagiante, por serem estas expressões, símbolos e lembretes d'Aquele a quem se ama. Não podemos agir com desprezo ou desdém para com essas coisas sem ofender Aquele a quem amamos.
A crise da teologia hoje e, mais amplamente, a crise na Igreja, deve-se, no fundo, à ausência prevalente do espírito dos “santos loucos”, da “loucura por Cristo”, daqueles santos que se dispunham a deixar tudo para abraçar o Senhor. A santa loucura de apaixonar-se por nosso Salvador crucificado é exatamente o oposto da mundanidade que infectou a Igreja. O que precisamos hoje é de loucos por Cristo, não de burocratas astutos, apologetas especialistas em comunicação ou autómatos inquestionáveis. O Filho de Deus deitado como bebé num estábulo: eis a “loucura” por meio da qual Deus se apresenta a nós quando se põe em nosso meio, com uma sabedoria muito superior à dos filósofos de nossa época.
É possível contemplar esse espírito de santa loucura — ora impetuoso como uma cascata, ora silencioso e tranquilo como a neve — nas novas comunidades religiosas que florescem, bem como nas famílias católicas fiéis que procuram viver ao máximo as bem-aventuranças do Evangelho, tão exigentes quanto compensatórias. Em tais comunidades ou famílias, a atmosfera tóxica de racionalismo egoísta foi afastada e substituída pelo ar puro e fresco de uma vida entregue ao Deus que nos amou e se entregou por nós.
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