Falemos mais dos defeitos. É como entrar num túnel, algo necessário para podermos sair depois ao ar livre das virtudes.
Muito claramente diz-nos o dicionário que a palavra “defeito” tanto pode significar “deficiência” (portanto, limitação física ou psíquica), como “imperfeição moral ou vício”.
Este segundo sentido é o que agora nos interessa. Os nossos defeitos, no campo moral, ou são “imperfeições”, isto é, virtudes falhas, insuficientes; ou então são “vícios”, ou seja, hábitos contrários às virtudes, como, por exemplo, o vício da gula é o hábito contrário à virtude da temperança.
Não é a primeira vez que tratamos, nestas páginas, de imperfeições, vícios e enganos da consciência. Mas será útil aprofundarmos um pouco mais o assunto, para perceber a urgente necessidade que todos nós temos de nos livrarmos de enganos – de autoenganos –, que nos paralisam. Cada falso juízo sobre a nossas qualidades morais e as nossas responsabilidades é como uma rede ou uma teia de aranha, que nos envolve e paralisa.
As nossas máscaras
Virtudes-mentira
Ao falar das virtudes que nos faltam, no capítulo quarto, já mencionamos que o amor-próprio sempre nos apresenta argumentos para nos convencer de que os defeitos que os outros vêem em nós são enganos deles. “Você é vaidoso” – dizem-nos . E, com cara de espanto, respondemos: “Eu, vaidoso?“. E arranjamos logo explicações para mostrar que não temos esse defeito.
O que agora quero dizer com as “máscaras” é bem mais sério do que isso. Muito pior do que a falsa inocência – “eu não tenho pecados”– é dar o nome de virtude a um defeito importante ou a um pecado grave. Não se trata só de negar o pecado que cometemos, mas de ufanar-nos dele, colocando-lhe por cima a máscara da virtude. Disso falava o profeta Isaías: Ai daqueles que a mal chamam bem, e ao bem, mal! (Is 5,20).
Exemplos? Além dos que víamos no capítulo quarto, veja os seguintes:
– A pessoa é rude, autoritária e grosseira, mas se gaba disso como se fosse virtude: “Sou muito sincero” – diz, todo estufado.
– Aquele pai não se atreve a corrigir costumes perniciosos dos filhos, para que não o chamem de autoritário e “antiquado”. Deixa que os filhos se «percam», e ainda por cima vangloria-se: “Sou muito amante da liberdade”.
– “Sou muito humilde– orgulha-se o outro – não tenho ambições”. Na realidade, deveria confessar que é um preguiçoso acomodado, que não se esforça por melhorar e cumprir até ao fim os seus deveres.
– “Sou muito responsável no trabalho, não tenho tempo para nada”. Tradução: aos olhos de Deus, você é um egoísta, que se desculpa com a quantidade de trabalho –bastante elástica – para não ter que gastar tempo com a família nem colaborar em obras de serviço social, apostólicas ou de caridade.
Essas máscaras são as piores? Não, as piores vêm a seguir. Estão no mais fundo do túnel.
Mentiras diabólicas
Imagino que mais de um vai achar este título cruel.
Para nos entendermos, começarei por dizer que Cristo dá ao diabo duas qualificações que o definem:
– É mentiroso e pai da mentira… É homicida desde o princípio (Jo, 8,44).
O mal entrou no mundo por uma mentira do demônio. Aliás, uma mentira bem típica dele. Conforme o relato do Gênesis, Deus havia dado um mandamento aos primeiros pais, e anunciara-lhes que, caso o transgredissem, morreriam (Gen 2,17 e 3,3).
O demônio, com voz aveludada, disse: «Não! Ora essa! De modo algum morrereis. Pelo contrário…,os vossos olhos abrir-se-ão e sereis como Deus» (id. 3,4-5). Desobedeçam, e verão: serão iguais a Deus. Foi um pecado de desobediência por orgulho, que acarretou a morte espiritual e física, quebrou a harmonia do homem e a mulher com Deus e com as demais criaturas, e foi o primeiro passo de «uma verdadeira inundação de pecado no mundo», da «corrupção universal em decorrência do pecado» (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 397-401).
O demônio é “mentiroso e homicida”– diz Cristo (cf. Jo 8,44). Você não acha muito atual a troca subtil de verdades por mentiras, que contrariam os Mandamentos de Deus e ferem mortalmente a dignidade da pessoa, da família, da sociedade?
Vamos lembrar apenas algumas delas, que você conhece bem:
– o adultério recebe o belo nome de “namoro”, e a virtude da fidelidade passa a ser obsoleta e ridicularizada.
– o aborto, que o santo padre João Paulo II não se cansava de qualificar como “verdadeiro assassinato”, recebe o belo nome de “direito da mulher sobre o seu próprio corpo”. Na realidade – tal como o pecado original – é uma desobediência grave contra o quinto Mandamento da Lei de Deus (“não matarás”), baseada numa mentira (pois o filho não é um órgão nem uma parte do corpo da mãe!). Como vê, os primeiros capítulos do Gênesis continuam atuais.
– chama-se “matrimônio” a qualquer união aberrante (num país da Europa, alguém casou legalmente com uma mula), e se estigmatiza os que desejariam reservar o belo nome de “casamento” para a aliança estável entre um homem e uma mulher, desejosos de criar uma família (pai, mãe, filhos). Mata-se o filho no ventre da mãe e mata-se a família, com base em mentiras.
– a mera espontaneidade (sentimentos e impulsos sem raciocínio prévio nem equilíbrio) é chamada de autenticidade. Mas, baseados nessa “autenticidade”, muitos jovens patinam sem rumo e perdem o norte da vida.
– à incontinência da gula, do sexo, do álcool e das drogas (que desemboca em vício e escravidão), chamam de “liberdade”.
– crimes morais que já foram abominados como hediondos – por exemplo, as experiências do nazista Mengele com seres humanos (nascidos, abortados ou, embrionários) –, chamam-se agora de direitos da ciência e expressões da modernidade.
– o “comum” é chamado de “normal” (cada vez é mais “comum” que jovens se embriaguem nas noites e consumam drogas; como isso se vai generalizando, acaba por parecer entre a juventude, “normal”). De acordo com esse tipo de raciocínio, se continuar a crescer o número de assassinatos de inocentes, deveremos dizer que matar à toa qualquer pessoa é “normal”.
A virtude indefinida
A mentira falsifica as bases do bem, da moral, que Santo Agostinho chamava a “vida boa”, ou seja, guiada pela bondade objetiva, que distingue claramente o Bem do Mal.
Se essas bases objetivas são minadas, a vida moral fica sem rumo nem sinalização, conduzida apenas pelos voos caprichosos da borboleta da falsa liberdade. É o relativismo, a moral puramente subjetiva, volátil como os desejos e os caprichos. Então não faz sentido falar de virtude. A borboleta , diz para mim que isso é virtude, e para si diz que não é. E daí? Daí que o edifício moral desaba em cacos sobre uma base de areia movediça.
A virtude, o bem e o mal, têm contornos definidos: a Verdade de Deus, a sua Bondade, a sua Palavra, os seus Mandamentos.
Ora, quando se nega esse referencial, as pessoas ficam a tatear no escuro. «Se a promoção do próprio eu é vista em termos de autonomia absoluta – dizia João Paulo II – , a vida (individual e social) aventura-se pelas areias movediças de um relativismo total. Então, tudo é convencional, tudo é negociável, inclusive o primeiro dos direitos fundamentais, o da vida» (Evangelium Vitae, n. 20).
No mesmo sentido falou muitas vezes – incansavelmente – Bento XVI, e frisou: «Nós viveremos de modo justo, se vivermos segundo a verdade do nosso ser, ou seja, segundo a vontade de Deus. Porque a vontade de Deus não é para o homem uma lei imposta a partir de fora que o obriga, mas a medida intrínseca da sua natureza, uma medida que está inscrita nele e que o torna imagem de Deus… Se nós vivermos contra a verdade, contra Deus, contra o amor, então nos destruiremos…» (Homilia, 8/12/2005).
O Catecismo da Igreja exorta-nos a nos colocarmos diante de Deus, em oração, para «fazer cair as nossas máscaras e voltar o nosso coração para o Senhor que nos ama» (n. 2711). As máscaras mentem, as máscaras matam. Só a oração sincera abre os olhos. Procurando a Deus é que conseguiremos que a nossa vida deixe de ir na contramão da verdade e enverede pela rota da realização cristã – do Amor –, fora da qual não existe autêntica realização.
In Padre Faus.org