Já tivemos a oportunidade de considerar os terríveis rigores da Justiça Divina na outra vida, sobre os quais é impossível pensar sem tremer. Se aquele fogo, inflamado pela Justiça Divina, se aquelas penas excruciantes, comparadas a todas as penitências dos santos e os sofrimentos dos mártires juntos, são como nada, quem seria capaz de olhar para essa realidade e não estremecer de pavor?
Temos aqui um medo salutar e que está em conformidade com o espírito de Jesus Cristo. Nosso divino Mestre deseja que tenhamos temor, e que temamos não apenas o Inferno, mas também o Purgatório, que é uma espécie de “Inferno mitigado”. É a fim de inspirar em nós este santo temor que Ele mostra a muitos os cárceres do Supremo Juiz, dos quais não saíremos até havermos pago o último centavo (cf. Mt 5, 26).
Entretanto, não é intenção de Nosso Senhor que tenhamos um medo excessivo e estéril, sombrio e sem confiança, que tortura e desencoraja. Não, Ele deseja que nosso temor seja temperado com uma grande confiança em sua misericórdia; Ele deseja que nós temamos o mal a fim de o prevenirmos e evitarmos; Ele deseja que a consideração daquelas chamas reparadoras estimule em nós o fervor no seu serviço e nos impulsione a expiar nossas faltas neste mundo, ao invés do outro. “Mais vale purificar-se agora dos pecados e cortar todos os vícios”, diz o autor da Imitação de Cristo (p. I, c. 24, n. 2), “do que reservar a purificação para o futuro.”
Se, porém, não obstante nossos esforços por viver bem e reparar nossos pecados neste mundo, houver de nossa parte fundados temores de que teremos de passar pelo Purgatório, devemos olhar para essa possibilidade com confiança ilimitada em Deus, que nunca deixa de consolar aqueles que Ele purifica com sofrimentos.
Agora, para dar ao nosso medo esse caráter prático, esse contrapeso de confiança, depois de havermos contemplado o Purgatório em todo o rigor de suas penas, devemos considerá-lo sob outro aspecto e a partir de um ponto de vista diferente, a saber, o da Misericórdia Divina, que brilha ali não menos do que a divina Justiça.
Se Deus reserva terríveis castigos na outra vida para as menores das faltas, Ele não as inflige sem, ao mesmo tempo, temperá-las com clemência; e nada mostra melhor a harmonia admirável da perfeição divina do que o Purgatório, onde a mais severa justiça é exercida, juntamente com a mais inefável misericórdia. Se Nosso Senhor castiga aquelas almas que lhe são queridas, é em seu amor que Ele o faz: “Eu repreendo e educo os que eu amo” (Ap 3, 19). Com uma mão Ele bate, com a outra Ele cura. Ele oferece misericórdia e redenção em abundância: Quoniam apud Dominum misericordia, et copiosa apud eum redemptio, “Pois no Senhor se encontra toda graça e copiosa redenção” (Sl 129, 7).
Essa misericórdia infinita de nosso Pai celestial deve ser a fundação firme de nossa confiança, a qual, segundo o exemplo dos santos, devemos manter sempre diante de nossos olhos. Os santos nunca a perderam de vista, e é por essa razão que o medo do Purgatório nunca os privava da paz e da alegria de que eles gozavam no Espírito Santo.
Santa Lidvina, que conhecia bem a tremenda severidade do sofrimento expiatório, era animada desse espírito de confiança e procurava inspirar o mesmo em outras pessoas.
Uma vez ela recebeu a visita de um piedoso sacerdote que, tendo se sentado próximo ao seu leito, juntamente com outras pessoas virtuosas, iniciou uma conversa sobre os sofrimentos da outra vida. Vendo nas mãos de uma mulher um vaso repleto de grãos de mostarda, o padre viu aí uma ocasião para observar como ele estremecia ao pensar no fogo do Purgatório. “Não obstante”, ele acrescentou, “eu me daria por satisfeito indo para lá por tantos anos quantos fossem os grãos de mostarda presentes neste vaso; assim, pelo menos, eu estaria certo de minha salvação.”
“O que está a dizer, padre?”, replicou a santa. “Por que tão pouca confiança na misericórdia de Deus? Ah, se o senhor tivesse um conhecimento melhor do que é o Purgatório, de quão terríveis são os tormentos que lá se deve suportar…!” Ao que o padre respondeu: “Seja como for o Purgatório, eu persisto no que digo.”
Algum tempo depois, esse sacerdote veio a falecer, e as mesmas pessoas que estiveram presentes durante essa conversa com Santa Lidvina perguntaram-lhe qual era a condição do padre no outro mundo. “O falecido está bem, graças à vida virtuosa que levou”, disse a santa, “mas seria melhor se ele tivesse tido mais confiança na Paixão de Jesus Cristo…”
Em que consistia essa falta de confiança que mereceu a desaprovação de nossa santa? Justamente na opinião, que esse bom padre mantinha, de que seria quase impossível salvar-se, e de que deveríamos entrar no Céu só depois de haver passado por inúmeros anos de tortura.
Essa ideia é erronea e contrária à confiança cristã. Nosso Salvador veio para trazer paz aos homens de boa vontade, impondo-lhes, como condição para a salvação, um jugo que é suave e um fardo que não é pesado (cf. Mt 11, 30).
Assim, pois, tenha boa vontade e você encontrará paz, e verá todas as dificuldades e temores desaparecerem. Boa vontade! Isso é tudo. Tenha boa vontade, submeta-se à vontade de Deus, coloque a sua santíssima Lei acima de todas as coisas, sirva ao Senhor com todo o seu coração, e Ele lhe dará uma assistência de tal modo poderosa que você entrará no Paraíso com uma surpreendente facilidade.
“Eu jamais acreditaria”, você me dirá, “que fosse tão fácil entrar no Céu!” Mais uma vez, eu repito, para operar em nós essa maravilha da sua misericórdia, Deus pede de nossa parte “corações ao alto”, uma boa vontade. Isso significa, propriamente falando, submeter-nos e conformar nossa vontade à de Deus, que é a regra de toda boa vontade, atitude que atinge sua máxima perfeição quando nós abraçamos a vontade divina como o bem supremo, mesmo quando ela exige de nós os maiores sacrifícios, os mais agudos sofrimentos.
Ó condição admirável! A alma assim disposta parece não experimentar dor, e isso porque ela está animada do espírito do amor; e, como diz Santo Agostinho, quando se ama, não se sofre, ou, quando se sofre, ama-se o próprio sofrimento: Aut si laboratur, labor ipse amatur.
O amor a Deus e ao próximo transforma, transfigura o sofrimento de tal maneira, que todo o amargor é mudado em doçura. “Quando chegar ao estado em que a aflição lhe seja suave e gostosa por amor a Jesus, dê-se então por feliz, porque achou o paraíso na terra” (Imitação de Cristo, p. II, c. 12, n. 11).
Tenhamos, pois, um grande amor a Deus, grande caridade, e pouco medo precisaremos ter do Purgatório. O Espírito Santo dá testemunho nas profundezas de nosso coração que, sendo crianças de Deus, não há por que temermos os castigos de um Pai.
Referências
Extraído e levemente adaptado da obra “Purgatory: Explained by the Lives and Legends of the Saints” (p. II, c. 1), Londres: Burns & Oates, 1893, pp. 124-128.