Das Memórias da Irmã Lúcia:
— E eu também vou para o Céu? — Sim, vais. — E a Jacinta? — Também. — E o Francisco? — Também, mas tem que rezar muitos terços. Lembrei-me então de perguntar por duas raparigas que tinham morrido há pouco. Eram minhas amigas e estavam em minha casa a aprender a tecedeiras com minha irmã mais velha.
— A Maria das Neves já está no Céu? — Sim, está. Parece-me que devia ter uns 16 anos. — E a Amélia? — Estará no purgatório até ao fim do mundo. [1]
Talvez a revelação da Virgem Santíssima à Irmã Lúcia nos assuste um pouco. É de fatco impressionante a ideia de uma alma a sofrer no Purgatório até à consumação dos tempos. Movidos pela curiosidade, podemos chegar a perguntar-nos o que teria feito Amélia para merecer uma punição assim tão severa da justiça divina.
O que mais nos aproveita, porém, é pensar que todos nós podemos muito bem ter a mesma sorte dessa amiga da Irmã Lúcia, caso levemos uma vida medíocre, “mais ou menos”, sem peso; caso não queiramos pagar, nesta existência, o alto preço do amor. O Purgatório é, afinal, o lugar para onde vão as almas que, embora se tenham salvo, não quiseram entregar-se totalmente a Deus; embora se tenham salvo, ainda estavam muito apegadas às coisas deste mundo.
Queremos viver plenamente o chamado de Deus para nós ou nos bastará “garantir uma vaga” no Purgatório?
A pena de Amélia leva-nos a lembrar, também, daquela visão de Santa Francisca Romana, segundo a qual “por cada pecado mortal perdoado”, restaria “à alma culpada passar por um sofrimento de sete anos” no Purgatório. A amiga da Irmã Lúcia talvez tenha sido uma dessas almas que acumularam em vida inúmeros pecados mortais, dos quais se arrependeram, sem que tenham tido tempo, no entanto, para repará-los nesta vida.
Com revelações como essa, Deus quer fazer um apelo à nossa indiferença, dar um grito para romper a nossa surdez. Não se entra no Céu senão por meio de muitos sofrimentos (cf. At 14, 22). Se não quisermos sofrer aqui, teremos de sofrer no outro mundo. E daí não saíremos enquanto não tivermos pago “até o último centavo” (Mt 5, 26).
Cumpre dizer, de outro lado, para não retratar o Purgatório com cores demasiado duras, que evidentemente é bem mais consoladora a sorte de Amélia que a das inúmeras almas que os pastorinhos de Fátima viram precipitando-se no Inferno. É evidente que os dois estados não podem ser equiparados, por mais doloroso e duradouro que seja o Purgatório.
O problema de muitos de nós é o quão longe estamos da meta, o quão mesquinha é muitas vezes a lógica com que vivemos a nossa fé. Quantas vezes não pensamos, por exemplo, ou até dizemos: “Se eu chegar ao Purgatório, já me darei por satisfeito”, ou: “Se for ao Purgatório, já estarei no lucro”?
Não que isso não seja verdade, mas é uma verdade contada pela metade. É como a história do jovem rico (cf. Mc 10, 17-27), que poderia ser um grande discípulo de Cristo, e não foi.
Poderíamos até perguntar-nos se essa personagem anónima dos Evangelhos, da qual não mais tivemos notícia, realmente se salvou. Talvez até tenha tido a “sorte” de passar o Purgatório com Amélia até o fim do mundo. Talvez já esteja no Céu agora, tendo passado por um brevíssimo Purgatório. A verdade é que, da maneira como ele deixou a famosa cena do Evangelho, o seu lugar ainda não era o Céu. Porque o Céu não é simplesmente o lugar de quem não tem pecados (como o jovem rico parecia não ter); o Céu é o lugar dos que amam, dos que querem unir-se a Deus mais do que qualquer coisa nesta vida.
Todos nós podemos muito bem ter a mesma sorte dessa amiga da Irmã Lúcia, caso não queiramos pagar, nesta existência, o alto preço do amor.
Mas e nós, queremos isso? Queremos amar a Deus de todo o coração, ou nos contentaremos com garantir a nossa salvação? Queremos viver plenamente o chamado de Deus para nós ou nos bastará “garantir uma vaga” no Purgatório?
Ninguém pense que se trata de desejos vãos. O quanto quisermos indicará a medida com que trabalharemos. Quem pensa em atingir o Purgatório, se esforçará só o necessário para chegar aí. Se trabalharmos para o Céu, no entanto, tudo mudará. Inclusive a nossa sorte na outra vida.
Que o exemplo dessa amiga da Irmã Lúcia nos ajude a imitar os pastorinhos de Fátima, que viveram sua vocação com heroísmo e, como recompensa, foram acolhidos sem demora no Reino dos Céus. Quanto à alma de Amélia, só o que lhe resta é contar com as nossas orações… “até ao fim do mundo”.
In Christo Nihil Praeponere